AQUARELA DESCOLORIDA
Por Ana Paula Gatti Panizza, Orientadora Psicoeducacional em atuação no IECJ
Numa folha qualquer, eu desenho um sol amarelo
E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo
Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva
E se faço chover, com dois riscos tenho um guarda-chuva
Não nos faltam textos eruditos, científicos ou simples desabafos sobre a infância cada vez mais curta, sobre miniadultos, aos 7 ou 9 anos. Ana Macarini deixou a sua contribuição no site contioutra.com, no texto intitulado “Adultização: a infância descartada”, que chamou a atenção de nossas educadoras e, moralmente, me obrigou um posicionamento sobre o tema.
Parece-nos que até a natureza tem mudado seus padrões… os corpos das nossas crianças têm mostrado formas adultecidas, precoces e sustentam cabeças cheias de ideias e fantasias que não são capazes de se protegerem dos apelos publicitários, tão agressivos e persuasivos, que seduziram até mesmo os pais, seus supostos protetores naturais.
Meninos e meninas, que deveriam carregar bolas e bonecas, carregam pesadas expectativas de famílias ávidas por sucesso. E o que é sucesso? Uma vida em “cinquenta tons de cinza”?
Se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel
Num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu
Vai voando, contornando a imensa curva norte-sul
Vou com ela, viajando Havaí, Pequim ou Istambul
Pinto um barco a vela branco navegando
É tanto céu e mar num beijo azul
Entre as nuvens, vem surgindo um lindo avião rosa e grená
Tudo em volta colorindo com suas luzes a piscar
Basta imaginar e ele está partindo, sereno e lindo,
E se a gente quiser, ele vai pousar
As viagens internacionais começam ainda na gestação: enxoval. Depois, torna-se quase uma obrigatoriedade ter conhecido a Disney até os 15 anos, um intercâmbio no Ensino Médio, cursos extras na Europa durante a faculdade e uma carreira financeiramente promissora, capaz de custear muito mais do que foi recebido dos pais. Afinal, a próxima geração deve ser melhor do que a anterior, não é mesmo?!
Para isso, o mínimo exigido é fluência bilíngue, médias acima de 9,0 e medalhas em pelo menos três categorias de esportes ou atividades diferentes.
Mas, e se o esperado não for atingido?… E se a média raspar no 6,0?… E se não gostar de futebol ou natação?… E se não for o(a) protagonista da peça de teatro ou apresentação musical?… E se o cansaço bater?!
É possível ser feliz se não alcançarmos as metas? É possível viajar para mais perto? Ainda existe um sítio de família onde se possa encontrar os primos, brincar na lama e desenhar com gizes coloridos em lousas verdes?
Numa folha qualquer, eu desenho um navio de partida
Com alguns bons amigos, bebendo de bem com a vida
De uma América a outra, consigo passar num segundo
Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo
Um menino caminha e caminhando chega no muro
E ali logo em frente, a esperar pela gente, o futuro está
Quando nossas crianças se deparam com os muros da vida, percebemos que não foram treinadas a resolver situações-problema da vida real. Acontecem situações de conflito e há uma constatação assustadora: uma geração inteira sob o triste diagnóstico de “intolerância à frustração”.
Basta uma avaliação oral, uma nota baixa, uma provocação maliciosa de um colega espertão para que a autoestima e autoconfiança, construídas como castelos de areia, sejam eliminadas, imersas numa onda de depressão.
O muro com o qual nossas crianças se deparam não tem nada de rosa ou grená. Maior e mais forte do que a Muralha da China, ele aparece como um imenso obstáculo à realização dos sonhos infantis, digo, sonhos adultos projetados sobre uma criança que se esqueceu de como sonhar! E sonhar quando, se não havia sido permitido o ócio criativo, a recarga completa de sua bateria humana, em que é preciso encarar o NADA para se conquistar o TUDO?
Vejo, claramente, os tijolos desse muro expostos, revelando a sua marca em letras colossais: EXCESSOS.
E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar
Não tem tempo, nem piedade, nem tem hora de chegar
Sem pedir licença muda a nossa vida
E depois convida a rir ou chorar
Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá
O fim dela, ninguém sabe bem ao certo onde vai dar
Vamos todos numa linda passarela
De uma aquarela que um dia, enfim, descolorirá
Que descolorirá…
Não há nada mais triste do que assistir ao sumiço das aquarelas, ao desbotamento da infância, ao surgimento de uma vida quase inteiramente adulta, não madura, que passa do verde ao podre, enlatada, artificial e sem significado, que descolorirá… até se apagar.
Bora desligar o celular, guardar as agendas na gaveta e sair dos edifícios para ver o céu azul de inverno; sentir o sol aquecer a nossa família, timidamente; brincar de ver dinossauros nas nuvens e (re)viver a infância, enquanto há cores sem pixels!
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